O direito à Saúde ou à proteção da
saúde enquanto um dever do Estado foi apenas reconhecido em Portugal com a
aprovação da Constituição da República de 1976, na sequência da Revolução de
Abril.
Esta decisão consagrava um processo
de mudança iniciado nos anos 60 e 70, com o movimento das carreiras médicas
(1961) a que seguiu a aprovação do decreto-lei 413/71 durante a chamada
“Primavera Marcelista” e uma importante reforma orgânica da saúde, liderada por
Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio, que organizou o Ministério da Saúde de
acordo com s princípios da administração moderna, integrando unidades de saúde
até aí dispersas, procurando deslocar o eixo dos cuidados de saúde dos
hospitais para os cuidados de proximidade através da criação de uma rede
nacional de centros de saúde e promovendo a universalização dos cuidados de
saúde através da generalização do sistema de previdência aos trabalhadores dos
campos.
Mas foi só em 1976 com aprovação da
Constituição da República que o Direito à Saúde foi consagrado no Artigo 54.º
da Constituição, que no seu n.º 2 definia que esse direito seria realizado
através de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e gratuito “O direito
à proteção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde
universal, geral e gratuito …” mais tarde substituído por um Serviço Nacional
de Saúde universal geral e tendencialmente gratuito “Através de um serviço
nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e
sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.
Foi necessário esperar pelo ano de
1979 para que a Assembleia da República aprovasse a Lei do Serviço Nacional de
Saúde (Lei n.º 56/79 de 15 de Setembro), na tentativa de operacionalizar os
desígnios constitucionais. Com as eleições legislativas de dezembro de 1979 o
país entrou num novo ciclo político protagonizado pelas forças políticas que se
tinham oposto à aprovação da Lei n.º 56/79, o que levou a que o VIII Governo
Constitucional em 1982 revogasse os aspetos essências da Lei do Serviço
Nacional de Saúde através da aprovação do Decreto-Lei n.º 254/82 de 29 de
Junho, que criava as administrações regionais de saúde (ARS), considerado
inconstitucional por um Acórdão de um Tribunal Constitucional de 1984.
Manteve-se assim e até aos dias de
hoje um sistema de saúde misto, tanto para o financiamento como para a
prestação, através de um Serviço Nacional de Saúde financiado por impostos,
complementado por um esquema de seguros públicos, os chamados subsistemas de saúde,
um setor social não-lucrativo e um setor privado de saúde, enquadrados a partir
dos anos 90 numa nova Lei de Bases de Saúde que coloca o Serviço Nacional de
Saúde como "um qualquer sub-sistema" praticamente ao mesmo nível de todas as entidades de saúde privadas,
diluindo o Serviço Nacional naquilo que se passa a denominar “sistema nacional
de saúde” abrindo portas à destruição das carreiras médicas e à política privatizadora.
Apesar de se ter desenvolvido longe
da sua matriz constitucional, o Serviço Nacional de Saúde cresceu a
partir de 1983 com base nos princípios dos cuidados de saúde primários, através
de uma rede centros de saúde, com médicos de família e enfermeiros que
progressivamente abrangeu todo o país, constituindo-se ao longo dos últimos 40
anos como um dos principais legados do desenvolvimento da democracia portuguesa
pós 25 de Abril e um instrumento fundamental para a redução das desigualdades
entre os portugueses e a maior vitória da democracia portuguesa.
Destes progressos são bem
conhecidos os exemplos dos resultados obtidos nos últimos 45 anos na redução da
mortalidade infantil e no aumento da esperança de vida, que fizeram com que
Portugal figurasse como um dos exemplos no Relatório Mundial de Saúde de 2008
“Cuidados de Saúde Primários – Agora Mais Que Nunca”.
A esperança de vida é agora de 13,1
anos mais elevada do que há 42 anos, a mortalidade infantil reduziu-se para
metade a cada 8 anos até estabilizar na casa dos 3/1.000, e o desempenho de
Portugal na redução da mortalidade nos vários grupos etários é dos mais
consistentes e bem-sucedidos no mundo.
Resultados confirmados com a
recente publicação do documento "Portugal: The Nation’s Health 1990–2016 - An overview of the Global Burden of Disease Study 2016 Results" que
analisa o progresso que o país experienciou nos últimos 26 anos, em termos de
saúde, bem-estar e desenvolvimento, e os novos desafios que enfrenta à medida
que a sua população cresce e envelhece. O documento faculta informações sobre a
mortalidade e morbilidade que impedem os portugueses de viverem vidas longas e
saudáveis e clarifica os fatores de risco que contribuem para uma saúde mais
débil, das quais salientamos.
• A
confirmação de que Portugal passou da mais baixa esperança de vida à nascença
em 1990 para os países de elevado-médio rendimento, para passado 26 anos ter
uma expectativa de vida semelhante à média dos referidos países. Resultado que
foi principalmente obtido pela redução da mortalidade prematura resultante das
doenças cardiovasculares e dos acidentes de transporte.
• Apesar
dos portugueses viverem mais, o número de anos vividos com saúde não aumentaram
na mesma proporção.
• A
mortalidade prematura em Portugal, medida pelas estimativas dos anos de vida
perdidos (YLL, Years of Life Lost), entre 1990 e 2016 diminuiu 25,3%, em grande
parte devido às reduções nas mortes por acidente vascular cerebral (AVC) e pela
doença cardíaca isquémica, resultantes da melhoria significativa verificada no
acesso e na qualidade dos serviços prestados pela rede de emergência
pré-hospitalar que ocorreu nos últimos anos através das Vias Verdes do AVC e da
doença coronária.
• A
diminuição da mortalidade prematura (YLLs) decorrente dos acidentes de
transporte e dos problemas neonatais foi também considerada um grande sucesso
deste período. Os acidentes de transporte diminuíram 75,3%, as neonatais 90,3%
e os defeitos congénitos 78,5%.
• A
mortalidade prematura (YLLs) por cancro do pulmão aumentou nos últimos anos,
verificando-se uma subida mais substancial entre as mulheres (68.1%) do que nos
homens (34.4%), explicada pelo aumento consumo de tabaco entre as mulheres.
• As
principais causas de anos vividos com incapacidade (YLDs) em Portugal são as
doenças crónicas, principalmente, as perturbações músculo-esqueléticas, as
perturbações mentais e as associadas ao consumo de substâncias, bem como as
perturbações dos órgãos dos sentidos, as perturbações neurológicas e a
diabetes.
• No
caso dos anos de vida ajustados à incapacidade (DALYs) usados para descrever a
carga da doença, levando em conta as mortes prematuras e a incapacidade, são de
novo, o grande grupo das doenças crónicas a ultrapassar largamente a
importância relativa dos outros grandes grupos de causas, nomeadamente, as
lesões e as doenças transmissíveis, maternas, neonatais e nutricionais.
• No
que respeita à carga global da doença, Portugal encontra-se significativamente
melhor do que a média dos seus pares (países de elevado-médio rendimento) para
a doença isquémica cardíaca, doença cerebrovascular, doenças dos órgãos dos
sentidos, diabetes, cancro do pulmão, doença pulmonar obstrutiva crónica,
infeções respiratórias inferiores, acidentes de transporte e quedas;
encontra-se significativamente pior em relação às dores lombares (lombalgias) e
do pescoço, às perturbações depressivas, à enxaqueca, às doenças da pele e ao
cancro colo-retal.
Foi neste contexto que o sistema de
saúde português se foi confrontando com novos e velhos desafios ao longo das
últimas décadas, procurando por um lado adaptar o Serviço Nacional de Saúde ao
envelhecimento da população, ao crescimento das doenças crónicas às desigualdades em saúde, às novas tecnologias, às exigências e às preferências
dos consumidores por mais e melhor informação. Ao mesmo tempo que procurava
melhorar a gestão dos serviços, modernizando-os, tornando-os mais acessíveis e
efetivos, de que são exemplos a reforma dos cuidados de saúde primários e a
criação da rede nacional de cuidados continuados integrados em 2005, tentando
responder à sobreutilização dos serviços de urgência melhorando a integração e
o contínuo de cuidados, tudo isto num ambiente de restrições financeiras, de
dificuldades na modernização da gestão dos Hospitais e de dificuldades no recrutamento
de profissionais de saúde.
45 Anos passados sobre o 25 de
Abril e 40 anos sobre a criação do Serviço Nacional de Saúde é o momento de “reconduzir
o SNS à sua matriz constitucional e humanista” como disse António Arnaut (aqui)(aqui).
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