Maternidade - José de Almada Negreiros |
As Mães
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão
todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá
encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus
lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem
órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em
toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara
del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto
ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as
Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o
rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira
estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não
forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do
fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a
luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos
muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o
último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si;
outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo,
pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam
ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras,
depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe
pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim
velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas
assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves,
caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro
orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas
veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas
cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas.
Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não
tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos,
rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de
couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem
com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para
retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos
colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam
a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que
também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema!
Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras,
juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço
uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa
uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as
Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.