domingo, 5 de maio de 2024

Óleo sobre tela - Centro de Arte Moderna Gulbenkian

Maternidade - José de Almada Negreiros

As Mães

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê.

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

 Eugénio de Andrade, in 'Vertentes do Olhar'

domingo, 29 de janeiro de 2023

O NHS está doente, mas é tratável - Editorial da Lancet - janeiro 2023

O Serviço Nacional de Saúde tem 75 anos de idade e não está bem. Os doentes com suspeita de ataque cardíaco esperam uma ambulância cinco vezes mais tempo do que a meta de 18 minutos. Em 2022, 347.707 doentes passaram mais de 12 h nos serviços de Acidentes e Emergências à espera de uma cama, quatro vezes mais do que nos 10 anos anteriores juntos. O excesso de mortes em 2022 foi o mais elevado em 50 anos. Estão a sair números recorde de profissionais do SNS. Infelizmente, é provável que as coisas piorem antes de melhorarem. Pela primeira vez na história do SNS, tanto enfermeiros como pessoal de ambulâncias irão fazer greve a 6 de fevereiro, a menos que se chegue a um acordo sobre os salários. Os médicos em formação também irão votar se vão fazer greve. Este é sem dúvida o momento mais perigoso para o SNS desde o seu início.



 

Problemas crónicos e agudos têm-se conjugado para fomentar esta rápida deterioração. Embora os sintomas estejam presentes desde pelo menos 2015, têm sido mal diagnosticados e deixados sem tratamento. O subinvestimento, a falta de pessoal e o funcionamento do sistema na sua capacidade máxima foram exacerbados pela profunda desmoralização e exaustão do pessoal do SNS, pelo aumento da procura de serviços e pelo aumento da COVID-19 e da gripe no inverno. A saúde da população tem sido negligenciada, o atraso na esperança de vida e as deficiências do sistema de assistência social têm sido ignorados.

 

No debate sobre soluções, há várias confusões inúteis. Primeiro, a tendência do Governo é acreditar que o atual modelo do SNS é insustentável e necessita de uma mudança radical, com copagamentos e contribuições de utilizadores com mais meios, como foi recentemente dito pelo ex-Secretário da Saúde Sajid Javid. Este ponto de vista é profundamente errado. Com a abordagem certa, o SNS é sustentável e deve manter o princípio da prestação de cuidados gratuitos conforme as necessidades, que é o fundamento de uma sociedade justa. Segundo, que o SNS tem um problema de produtividade e que não faz o suficiente com o que lhe é dado. Isto é mal-entender o objetivo dos cuidados de saúde, que não são uma fábrica para doentes, julgados de acordo com uma métrica grosseira de eficiência, mas um serviço baseado em cuidados, solidariedade e qualidade. Continuar a concentrar-se em fazer comparativamente mais por comparativamente menos é perigoso e obviamente prejudicial. Em terceiro lugar, que os desafios enfrentados pelo SNS podem ser resolvidos através do recurso a um setor de saúde privado mais forte. O pessoal do setor privado do Reino Unido é maioritariamente proveniente do mesmo pessoal que compõe o setor público. Roubar um para fortalecer outro, enquanto se destrói fatalmente o serviço de saúde, não faz sentido. Em quarto lugar, a proposta de uma Comissão Real ou de um consenso interpartidário é pouco provável que seja útil. O SNS enfrenta uma crise de pessoal e uma crise de capacidade estreitamente ligadas a uma crise social. Temos um diagnóstico e o Governo deve agora avançar para tratar estas patologias. Evitar fazê-lo deve ser visto como uma escolha ideológica e não é devido a uma incurabilidade fundamental e inata.

 

curto prazo, existem dois remédios. Primeiro, o Governo tem de reconhecer que o SNS está em crise e requer uma ação urgente e sem paralelo. Em segundo lugar, deve transmitir uma mensagem de valor aos profissionais do SNS, sob a forma de compromissos relativamente a um acordo financeiro para pagamentos e compromissos não-financeiros, tais como abordar questões relativas a reformas de pensões, melhorar as condições básicas de trabalho e apresentar propostas concretizáveis sobre políticas de pessoal. Por sua vez, o SNS tem de aceitar que, seja qual for a causa, tem um problema de cultura. Racismo, sexismo, intimidação, assédio e conflito estão disseminados. Uma cultura de trabalho tóxica é a razão mais frequentemente citada para abandonar o SNS e tem um impacto negativo nos cuidados aos doentes.

 

longo prazo, o investimento na saúde pública e na prevenção deve ser aumentado como a principal forma de reduzir a procura no SNS. O Governo deve afastar-se das injeções de dinheiro a curto prazo e utilizar fundos provenientes dos impostos para proporcionar aumentos sustentados e previsíveis no financiamento. Desta forma, a capacidade e a resiliência podem ser incorporadas de novo no sistema a partir do zero, com investimento em pessoal, edificado e tecnologias. O SNS deve melhorar no rápido desenvolvimento e disseminação da inovação, e a adoção de novos modelos de trabalho não deve ser bloqueada pelas opiniões tradicionais sobre papéis e responsabilidades. Qualquer coisa é melhor do que o atual modelo de assistência social, que monetariza a vulnerabilidade, enriquece alguns prestadores e deixa mais de um quarto dos profissionais de serviço social a viver na pobreza.

   Os cuidados negligentes do SNS puseram o serviço de rastos. Mas ao contrário da narrativa popular, há vitórias rápidas. Assim, não pouco importante, é preciso valorizar e motivar quem trabalha no SNS, quem é responsável pela proteção da saúde da nação durante esta crise económica sem precedentes que está a agravar as desigualdades e a levar milhares de pessoas à pobreza e à precariedade. n

 

Tradução para português de Rosalvo de Almeida

TheLancet    Editorial     Vol 401 January 28,2023, p. 245

31.01.2023 - ENTREGA DO PRÉMIO NACIONAL DE SAÚDE 2019 A CONSTANTINO SAKELLARIDES

 


domingo, 28 de fevereiro de 2021

ATLAS MORTALIDADE ESPANHA 1996-2015 - REVELA DESIGUALDADES GEOGRÁFICAS BAIRRO A BAIRRO

Foi recentemente atualizado o Atlas da Mortalidade em Espanha, uma aplicação disponível na web, que mostra os principais resultados do projeto de investigação MEDEA3, intitulado “Desigualdades socioeconómicas e ambientais na distribuição geográfica da mortalidade em (23) grandes cidades de Espanha entre 1996-2015”.

O novo Atlas da Mortalidade, mais detalhado que os 2 anteriores, mostra profundas desigualdades entre os moradores de uma mesma cidade, às vezes apenas separados por uma rua.

De acordo com os resultados apresentados, verifica-se sempre o mesmo padrão, que corresponde à privação socioeconómica e ao gradiente social.

Assim o risco de morrer pelas 15 causas analisadas: SIDA, cancro do estômago, cancro do cólon e reto, cancro do pulmão, cancro da mama, cancro da próstata, cancro da bexiga, cancro hematológico, Diabetes, Demência, Doença cardíaca isquémica, Doença cerebrovascular, DPOC, Doenças fígado e cirrose, Suicídio e lesões autoinfligidas, Acidentes de tráfego, concentram-se nos bairros mais pobres. Nos homens são mais relevantes o cancro do pulmão, a DPOC e a SIDA, nas mulheres a Diabetes e em ambos os sexos, as doenças do fígado e a cirrose e o cancro do estômago.

Os autores analisaram um milhão de mortes em 26 cidades espanholas entre 1996 e 2015, agrupando as mortes por setores censitários, pequenas áreas onde vivem cerca de 1.500 residentes que votam no mesmo colégio eleitoral. O atlas permite visualizar os efeitos da desigualdade socioeconómica em função dos rendimentos, da habitação, do desemprego e da marginalização social.

Os dados recolhidos através de um índice de privação, confirma o resultado de outros estudos, associando os baixos salários, a habitação e os trabalhos a uma pior alimentação, a uma menor atividade física e um maior consumo de tabaco e álcool.

Efeito da privação na mortalidade por DPOC - Bilbao 

Algumas ruas funcionam como uma fronteira entre dois mundos diferentes, um de cada lado da calçada, confirmando trabalhos anteriores já divulgados. (aqui) (aqui) (aqui)

No passado dia 20 de fevereiro a edição do jornal El País, num extenso trabalho dá a conhecer 10 exemplos de bairros que espelham bem o papel dos determinantes sociais nas desigualdades em saúde (aqui).

Terminamos citando Michael Marmot “Why treat people and send them back to the conditions that make them sick”

quarta-feira, 15 de julho de 2020

USA: 5,4 MILHÕES DE NORTE-AMERICANOS PERDERAM A COBERTURA DE SAÚDE DESDE O INÍCIO DA PANDEMIA COVID-19


No passado dia 13 de julho, a organização norte-americana Families USA publicou um estudo intitulado “ The COVID-19 Pandemic and Resulting Economic Crash Have Caused the Greatest Health Insurance Losses in American History” (aqui)onde aborda os efeitos da pandemia COVID-19 na economia americana, a perda de empregos daí resultante e os seus efeitos na cobertura de saúde e no estado de saúde desses cidadãos na ausência de medidas legislativas federais com vista à proteção do direito à saúde dos cidadãos.

De acordo com os dados recolhidos junto de fontes oficiais, pela USA Families, 21.9 milhões norte-americanos perderam o seu trabalho entre fevereiro e maio de 2020 devido à maior crise de saúde pública que ocorreu nos últimos 100 anos, causando o maior colapso económico verificado desde a II Guerra Mundial. Em poucos meses, milhões de trabalhadores perderam seus empregos e pelo menos 5.4 milhões deles deixaram de ter qualquer cobertura de saúde, uma vez perderam simultaneamente acesso ao seguro de saúde anteriormente fornecido por seus empregadores, provocando um aumento de 39% no número de pessoas que perderam o seguro de saúde, ultrapassando em apenas 3 meses o maior crescimento anual anteriormente verificado de 3.9 milhões durante a crise de 2008/2009.

Esta perda de cobertura de saúde atingiu principalmente os 5 estados mais afetados pela pandemia de COVID-19, Califórnia, Texas, Flórida, Nova Iorque e Carolina do Norte responsáveis por 49% do aumento total das pessoas que perderam acesso aos seguros de saúde. Em 8 estados, 20% ou mais dos adultos abaixo dos 65 anos não têm agora qualquer cobertura de saúde: o Texas, onde quase três em cada dez adultos com menos de 65 anos não têm seguro (29%); a Flórida (25%); o Oklahoma (24%); a Geórgia (23%); o Mississippi (22%); o Nevada (21%); a Carolina do Norte (20%); e a Carolina do Sul (20%).

Todos, com exceção do Oklahoma, também estão entre os 15 estados com o maior número de novos casos de SARS-CoV-2 durante a semana que terminou em 12 de julho.

Ao mesmo tempo 5 outros estados apresentaram aumentos no número de adultos sem seguro que excedem os 40%: Massachusetts, onde o número quase dobrou, aumentando em 93%; Havaí (72%); Rhode Island (55%); Michigan (46%); e New Hampshire (43%).

Sem nenhuma medida legislativa federal que reduza o impacto da perda de cobertura de saúde, os mais de 5.4 milhões cidadãos norte-americanos que perderam a cobertura de saúde veem assim a sua saúde posta em risco quer pela exposição à SARS-Cov-2, uma vez que sem cobertura de saúde as pessoas tendem a atrasar a procura de cuidados por causas dos custos, arriscando a sua saúde, a sua sobrevivência e acelerando a propagação do vírus para familiares e vizinhos, quer pela dificuldades em obter diagnósticos e tratamentos por condições crónicas como o cancro ou as doenças cardíacas ou cerebrovasculares, atrasando procedimentos e causando mesmo a morte precoce.

Sem cobertura de saúde que as protejam contra os riscos financeiros que as despesas extras em saúde podem provocar, mesmo em famílias da classe média, muitas famílias terão que optar entre pagar as despesas em saúde do seu próprio bolso ou suprir as suas necessidades básicas, quer com alimentação quer com a habitação, adiantando o documento que de acordo com números oficiais, em maio 26 milhões de famílias não tinham comida suficiente para se alimentar, e que 38 milhões de pessoas referiam ter pouca ou nenhuma capacidade para pagar a hipoteca ou a renda do próximo mês.

Sem cobertura universal de saúde, sem legislação federal que os proteja milhões de norte-americanos estarão condenados a sobreviver sem qualquer proteção de saúde.