domingo, 29 de janeiro de 2023

O NHS está doente, mas é tratável - Editorial da Lancet - janeiro 2023

O Serviço Nacional de Saúde tem 75 anos de idade e não está bem. Os doentes com suspeita de ataque cardíaco esperam uma ambulância cinco vezes mais tempo do que a meta de 18 minutos. Em 2022, 347.707 doentes passaram mais de 12 h nos serviços de Acidentes e Emergências à espera de uma cama, quatro vezes mais do que nos 10 anos anteriores juntos. O excesso de mortes em 2022 foi o mais elevado em 50 anos. Estão a sair números recorde de profissionais do SNS. Infelizmente, é provável que as coisas piorem antes de melhorarem. Pela primeira vez na história do SNS, tanto enfermeiros como pessoal de ambulâncias irão fazer greve a 6 de fevereiro, a menos que se chegue a um acordo sobre os salários. Os médicos em formação também irão votar se vão fazer greve. Este é sem dúvida o momento mais perigoso para o SNS desde o seu início.



 

Problemas crónicos e agudos têm-se conjugado para fomentar esta rápida deterioração. Embora os sintomas estejam presentes desde pelo menos 2015, têm sido mal diagnosticados e deixados sem tratamento. O subinvestimento, a falta de pessoal e o funcionamento do sistema na sua capacidade máxima foram exacerbados pela profunda desmoralização e exaustão do pessoal do SNS, pelo aumento da procura de serviços e pelo aumento da COVID-19 e da gripe no inverno. A saúde da população tem sido negligenciada, o atraso na esperança de vida e as deficiências do sistema de assistência social têm sido ignorados.

 

No debate sobre soluções, há várias confusões inúteis. Primeiro, a tendência do Governo é acreditar que o atual modelo do SNS é insustentável e necessita de uma mudança radical, com copagamentos e contribuições de utilizadores com mais meios, como foi recentemente dito pelo ex-Secretário da Saúde Sajid Javid. Este ponto de vista é profundamente errado. Com a abordagem certa, o SNS é sustentável e deve manter o princípio da prestação de cuidados gratuitos conforme as necessidades, que é o fundamento de uma sociedade justa. Segundo, que o SNS tem um problema de produtividade e que não faz o suficiente com o que lhe é dado. Isto é mal-entender o objetivo dos cuidados de saúde, que não são uma fábrica para doentes, julgados de acordo com uma métrica grosseira de eficiência, mas um serviço baseado em cuidados, solidariedade e qualidade. Continuar a concentrar-se em fazer comparativamente mais por comparativamente menos é perigoso e obviamente prejudicial. Em terceiro lugar, que os desafios enfrentados pelo SNS podem ser resolvidos através do recurso a um setor de saúde privado mais forte. O pessoal do setor privado do Reino Unido é maioritariamente proveniente do mesmo pessoal que compõe o setor público. Roubar um para fortalecer outro, enquanto se destrói fatalmente o serviço de saúde, não faz sentido. Em quarto lugar, a proposta de uma Comissão Real ou de um consenso interpartidário é pouco provável que seja útil. O SNS enfrenta uma crise de pessoal e uma crise de capacidade estreitamente ligadas a uma crise social. Temos um diagnóstico e o Governo deve agora avançar para tratar estas patologias. Evitar fazê-lo deve ser visto como uma escolha ideológica e não é devido a uma incurabilidade fundamental e inata.

 

curto prazo, existem dois remédios. Primeiro, o Governo tem de reconhecer que o SNS está em crise e requer uma ação urgente e sem paralelo. Em segundo lugar, deve transmitir uma mensagem de valor aos profissionais do SNS, sob a forma de compromissos relativamente a um acordo financeiro para pagamentos e compromissos não-financeiros, tais como abordar questões relativas a reformas de pensões, melhorar as condições básicas de trabalho e apresentar propostas concretizáveis sobre políticas de pessoal. Por sua vez, o SNS tem de aceitar que, seja qual for a causa, tem um problema de cultura. Racismo, sexismo, intimidação, assédio e conflito estão disseminados. Uma cultura de trabalho tóxica é a razão mais frequentemente citada para abandonar o SNS e tem um impacto negativo nos cuidados aos doentes.

 

longo prazo, o investimento na saúde pública e na prevenção deve ser aumentado como a principal forma de reduzir a procura no SNS. O Governo deve afastar-se das injeções de dinheiro a curto prazo e utilizar fundos provenientes dos impostos para proporcionar aumentos sustentados e previsíveis no financiamento. Desta forma, a capacidade e a resiliência podem ser incorporadas de novo no sistema a partir do zero, com investimento em pessoal, edificado e tecnologias. O SNS deve melhorar no rápido desenvolvimento e disseminação da inovação, e a adoção de novos modelos de trabalho não deve ser bloqueada pelas opiniões tradicionais sobre papéis e responsabilidades. Qualquer coisa é melhor do que o atual modelo de assistência social, que monetariza a vulnerabilidade, enriquece alguns prestadores e deixa mais de um quarto dos profissionais de serviço social a viver na pobreza.

   Os cuidados negligentes do SNS puseram o serviço de rastos. Mas ao contrário da narrativa popular, há vitórias rápidas. Assim, não pouco importante, é preciso valorizar e motivar quem trabalha no SNS, quem é responsável pela proteção da saúde da nação durante esta crise económica sem precedentes que está a agravar as desigualdades e a levar milhares de pessoas à pobreza e à precariedade. n

 

Tradução para português de Rosalvo de Almeida

TheLancet    Editorial     Vol 401 January 28,2023, p. 245

31.01.2023 - ENTREGA DO PRÉMIO NACIONAL DE SAÚDE 2019 A CONSTANTINO SAKELLARIDES

 


domingo, 28 de fevereiro de 2021

ATLAS MORTALIDADE ESPANHA 1996-2015 - REVELA DESIGUALDADES GEOGRÁFICAS BAIRRO A BAIRRO

Foi recentemente atualizado o Atlas da Mortalidade em Espanha, uma aplicação disponível na web, que mostra os principais resultados do projeto de investigação MEDEA3, intitulado “Desigualdades socioeconómicas e ambientais na distribuição geográfica da mortalidade em (23) grandes cidades de Espanha entre 1996-2015”.

O novo Atlas da Mortalidade, mais detalhado que os 2 anteriores, mostra profundas desigualdades entre os moradores de uma mesma cidade, às vezes apenas separados por uma rua.

De acordo com os resultados apresentados, verifica-se sempre o mesmo padrão, que corresponde à privação socioeconómica e ao gradiente social.

Assim o risco de morrer pelas 15 causas analisadas: SIDA, cancro do estômago, cancro do cólon e reto, cancro do pulmão, cancro da mama, cancro da próstata, cancro da bexiga, cancro hematológico, Diabetes, Demência, Doença cardíaca isquémica, Doença cerebrovascular, DPOC, Doenças fígado e cirrose, Suicídio e lesões autoinfligidas, Acidentes de tráfego, concentram-se nos bairros mais pobres. Nos homens são mais relevantes o cancro do pulmão, a DPOC e a SIDA, nas mulheres a Diabetes e em ambos os sexos, as doenças do fígado e a cirrose e o cancro do estômago.

Os autores analisaram um milhão de mortes em 26 cidades espanholas entre 1996 e 2015, agrupando as mortes por setores censitários, pequenas áreas onde vivem cerca de 1.500 residentes que votam no mesmo colégio eleitoral. O atlas permite visualizar os efeitos da desigualdade socioeconómica em função dos rendimentos, da habitação, do desemprego e da marginalização social.

Os dados recolhidos através de um índice de privação, confirma o resultado de outros estudos, associando os baixos salários, a habitação e os trabalhos a uma pior alimentação, a uma menor atividade física e um maior consumo de tabaco e álcool.

Efeito da privação na mortalidade por DPOC - Bilbao 

Algumas ruas funcionam como uma fronteira entre dois mundos diferentes, um de cada lado da calçada, confirmando trabalhos anteriores já divulgados. (aqui) (aqui) (aqui)

No passado dia 20 de fevereiro a edição do jornal El País, num extenso trabalho dá a conhecer 10 exemplos de bairros que espelham bem o papel dos determinantes sociais nas desigualdades em saúde (aqui).

Terminamos citando Michael Marmot “Why treat people and send them back to the conditions that make them sick”

quarta-feira, 15 de julho de 2020

USA: 5,4 MILHÕES DE NORTE-AMERICANOS PERDERAM A COBERTURA DE SAÚDE DESDE O INÍCIO DA PANDEMIA COVID-19


No passado dia 13 de julho, a organização norte-americana Families USA publicou um estudo intitulado “ The COVID-19 Pandemic and Resulting Economic Crash Have Caused the Greatest Health Insurance Losses in American History” (aqui)onde aborda os efeitos da pandemia COVID-19 na economia americana, a perda de empregos daí resultante e os seus efeitos na cobertura de saúde e no estado de saúde desses cidadãos na ausência de medidas legislativas federais com vista à proteção do direito à saúde dos cidadãos.

De acordo com os dados recolhidos junto de fontes oficiais, pela USA Families, 21.9 milhões norte-americanos perderam o seu trabalho entre fevereiro e maio de 2020 devido à maior crise de saúde pública que ocorreu nos últimos 100 anos, causando o maior colapso económico verificado desde a II Guerra Mundial. Em poucos meses, milhões de trabalhadores perderam seus empregos e pelo menos 5.4 milhões deles deixaram de ter qualquer cobertura de saúde, uma vez perderam simultaneamente acesso ao seguro de saúde anteriormente fornecido por seus empregadores, provocando um aumento de 39% no número de pessoas que perderam o seguro de saúde, ultrapassando em apenas 3 meses o maior crescimento anual anteriormente verificado de 3.9 milhões durante a crise de 2008/2009.

Esta perda de cobertura de saúde atingiu principalmente os 5 estados mais afetados pela pandemia de COVID-19, Califórnia, Texas, Flórida, Nova Iorque e Carolina do Norte responsáveis por 49% do aumento total das pessoas que perderam acesso aos seguros de saúde. Em 8 estados, 20% ou mais dos adultos abaixo dos 65 anos não têm agora qualquer cobertura de saúde: o Texas, onde quase três em cada dez adultos com menos de 65 anos não têm seguro (29%); a Flórida (25%); o Oklahoma (24%); a Geórgia (23%); o Mississippi (22%); o Nevada (21%); a Carolina do Norte (20%); e a Carolina do Sul (20%).

Todos, com exceção do Oklahoma, também estão entre os 15 estados com o maior número de novos casos de SARS-CoV-2 durante a semana que terminou em 12 de julho.

Ao mesmo tempo 5 outros estados apresentaram aumentos no número de adultos sem seguro que excedem os 40%: Massachusetts, onde o número quase dobrou, aumentando em 93%; Havaí (72%); Rhode Island (55%); Michigan (46%); e New Hampshire (43%).

Sem nenhuma medida legislativa federal que reduza o impacto da perda de cobertura de saúde, os mais de 5.4 milhões cidadãos norte-americanos que perderam a cobertura de saúde veem assim a sua saúde posta em risco quer pela exposição à SARS-Cov-2, uma vez que sem cobertura de saúde as pessoas tendem a atrasar a procura de cuidados por causas dos custos, arriscando a sua saúde, a sua sobrevivência e acelerando a propagação do vírus para familiares e vizinhos, quer pela dificuldades em obter diagnósticos e tratamentos por condições crónicas como o cancro ou as doenças cardíacas ou cerebrovasculares, atrasando procedimentos e causando mesmo a morte precoce.

Sem cobertura de saúde que as protejam contra os riscos financeiros que as despesas extras em saúde podem provocar, mesmo em famílias da classe média, muitas famílias terão que optar entre pagar as despesas em saúde do seu próprio bolso ou suprir as suas necessidades básicas, quer com alimentação quer com a habitação, adiantando o documento que de acordo com números oficiais, em maio 26 milhões de famílias não tinham comida suficiente para se alimentar, e que 38 milhões de pessoas referiam ter pouca ou nenhuma capacidade para pagar a hipoteca ou a renda do próximo mês.

Sem cobertura universal de saúde, sem legislação federal que os proteja milhões de norte-americanos estarão condenados a sobreviver sem qualquer proteção de saúde.

sábado, 9 de maio de 2020

BOLSONARO É A MAIOR AMEAÇA AO COVID-19 NO BRASIL - Editorial da LANCET 9 maio


Na sua edição de hoje a Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas revistas médicas do mundo, dedica o seu Editorial ao Brasil e à sua resposta à Pandemia do COVID-19, titulando que “ Bolsonaro é a maior ameaça à COVID-19 no Brasil sugerindo “Mude ou Saia” (aqui)

COVID-19 no Brasil: E daí?
Tradução livre com notas do Editorial da Lancet de 09 de maio 2020.

A pandemia de COVID-19 chegou mais tarde à América Latina do que a outros continentes (aqui). O primeiro caso registado no Brasil foi em 25 de fevereiro de 2020. Mas o Brasil é agora o país da América Latina com mais casos e mortes (147 003 casos e 10037 mortes em 9 de maio), apesar destes números serem subestimadas e provavelmente muito mais elevados (aqui) (aqui). Mas ainda mais preocupante, é a duplicação da taxa de mortes estimada em apenas 5 dias (aqui) assim como o resultado de um recente estudo do Imperial College (Londres, Reino Unido), que analisou a taxa de transmissão ativa do COVID-19 em 48 países, e que mostra que o Brasil é o país com a maior taxa de transmissão R0 de 2,81 (aqui). Grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro são atualmente os principais locais de maior incidência do COVD-19, existindo sinais preocupantes de que os novos casos estão a caminhar para o interior dos estados atingindo cidades mais pequenas, com pouca capacidade de resposta quer em camas de cuidados intensivos quer em ventiladores (aqui) (aqui). No entanto, talvez a maior ameaça à resposta ao COVID-19 no Brasil seja o seu presidente, Jair Bolsonaro.(aqui)(aqui)


Quando questionado pelos jornalistas na semana passada sobre o número cada vez maior de casos de COVID-19, respondeu: “E daí? O que quer você que eu faça?" Ele não apenas continua a semear confusão, desrespeitando abertamente as medidas sensatas de distanciamento e de confinamento decididos pelos governadores dos estados e pelos presidentes dos municípios, como perdeu dois ministros importantes e influentes nas últimas três semanas.(aqui)

Primeiro, em 16 de abril, Luiz Henrique Mandetta, o respeitado e bem quisto Ministro da Saúde, foi demitido depois ter criticado fortemente as ações de Bolsonaro numa entrevista à televisão, na qual pediu unidade nas decisões e nas mensagens do governo, com o risco de deixar os 210 milhões de brasileiros totalmente confusos. Depois no dia 24 de abril, após a demissão do chefe da polícia federal do Brasil por Bolsonaro, o ministro da Justiça Sérgio Moro, uma das figuras mais poderosas do governo de direita brasileiro nomeado por Bolsonaro para combater a corrupção, anunciou sua renúncia. Esta confusão no coração do governo é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública e também é um forte sinal de que a liderança do Brasil perdeu a sua bússola moral, se é que alguma vez a teve.

Mesmo sem este vazio de ações políticas ao nível do governo federal, o Brasil teria sempre dificuldades em combater o COVID-19. Cerca de 13 milhões de brasileiros vivem em favelas, em habitações que têm no geral mais de três pessoas por quarto e pouco acesso à água potável. As recomendações de distanciamento físico e higiene são quase impossíveis de seguir nesses locais – apesar de muitas favelas se terem auto-organizado para implementar as medidas da melhor maneira possível (aqui). O Brasil possui um grande setor informal de emprego, com muitas fontes de renda que não são mais uma opção. A população indígena que já estava sob séria ameaça mesmo antes do surto do COVID-19, porque o governo ignorou ou até incentivou a mineração e extração ilegal de madeira na floresta amazónica. Agora, esses madeireiros e mineradores correm o risco de levar o COVID-19 até às populações remotas da floresta amazónica. Uma carta aberta lançada no dia 3 de maio por Sebastião Salgado subscrita por centenas de artistas, intelectuais, cientistas e políticos de todo o mundo alerta para o genocídio iminente dos povos da floresta. (aqui)

E o que é que estão a fazer a sociedade civil e comunidade da saúde e da ciência do Brasil, num país conhecido pelo seu ativismo e franca oposição à injustiça e à desigualdade e favor da saúde como um direito constitucional?

Muitas organizações científicas, como a Academia Brasileira de Ciências e a ABRASCO, há muito se opõem a Bolsonaro por causa dos duros cortes no orçamento da ciência e pelas medidas que tem levado à destruição da segurança social e dos serviços públicos do Brasil.

No contexto do COVID-19, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão Arns, a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lançaram um o Pacto pela Vida e pelo Brasil que obteve o apoio de mais de 80 entidades. Muitas declarações e pedidos por escrito de funcionários do governo pedem unidade e soluções conjuntas.

Os “Panelaços”(aqui) como protesto durante as intervenções presidenciais acontecem com frequência. Há muita investigação em curso, da ciência básica à epidemiologia, e há rápida produção de equipamentos de proteção individual, respiradores e kits de teste.

Estas ações são sinais de esperança. No entanto, a liderança no mais alto nível do governo é crucial para evitar rapidamente o pior resultado desta pandemia, como é evidente em outros países. Na nossa série Lancet Brasil, os autores concluíram: “O desafio é, em última análise, político, exigindo o envolvimento contínuo da sociedade brasileira como um todo para garantir o direito à saúde de todos os brasileiros”.

O Brasil como país deve-se unir para dar uma resposta clara ao "E daí?" do seu Presidente. Ele precisa mudar drasticamente de rumo ou deve ser o próximo a sair.