sábado, 27 de abril de 2019

45 ANOS DEPOIS DE ABRIL - RECONDUZIR O SNS À SUA MATRIZ CONSTITUCIONAL E HUMANISTA


O direito à Saúde ou à proteção da saúde enquanto um dever do Estado foi apenas reconhecido em Portugal com a aprovação da Constituição da República de 1976, na sequência da Revolução de Abril.

Esta decisão consagrava um processo de mudança iniciado nos anos 60 e 70, com o movimento das carreiras médicas (1961) a que seguiu a aprovação do decreto-lei 413/71 durante a chamada “Primavera Marcelista” e uma importante reforma orgânica da saúde, liderada por Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio, que organizou o Ministério da Saúde de acordo com s princípios da administração moderna, integrando unidades de saúde até aí dispersas, procurando deslocar o eixo dos cuidados de saúde dos hospitais para os cuidados de proximidade através da criação de uma rede nacional de centros de saúde e promovendo a universalização dos cuidados de saúde através da generalização do sistema de previdência aos trabalhadores dos campos.

Mas foi só em 1976 com aprovação da Constituição da República que o Direito à Saúde foi consagrado no Artigo 54.º da Constituição, que no seu n.º 2 definia que esse direito seria realizado através de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e gratuito “O direito à proteção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito …” mais tarde substituído por um Serviço Nacional de Saúde universal geral e tendencialmente gratuito “Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.

Foi necessário esperar pelo ano de 1979 para que a Assembleia da República aprovasse a Lei do Serviço Nacional de Saúde (Lei n.º 56/79 de 15 de Setembro), na tentativa de operacionalizar os desígnios constitucionais. Com as eleições legislativas de dezembro de 1979 o país entrou num novo ciclo político protagonizado pelas forças políticas que se tinham oposto à aprovação da Lei n.º 56/79, o que levou a que o VIII Governo Constitucional em 1982 revogasse os aspetos essências da Lei do Serviço Nacional de Saúde através da aprovação do Decreto-Lei n.º 254/82 de 29 de Junho, que criava as administrações regionais de saúde (ARS), considerado inconstitucional por um Acórdão de um Tribunal Constitucional de 1984.

Manteve-se assim e até aos dias de hoje um sistema de saúde misto, tanto para o financiamento como para a prestação, através de um Serviço Nacional de Saúde financiado por impostos, complementado por um esquema de seguros públicos, os chamados subsistemas de saúde, um setor social não-lucrativo e um setor privado de saúde, enquadrados a partir dos anos 90 numa nova Lei de Bases de Saúde que coloca o Serviço Nacional de Saúde como "um qualquer sub-sistema" praticamente ao mesmo nível de todas as entidades de saúde privadas, diluindo o Serviço Nacional naquilo que se passa a denominar “sistema nacional de saúde” abrindo portas à destruição das carreiras médicas e à política privatizadora.

Apesar de se ter desenvolvido longe da sua matriz constitucional, o Serviço Nacional de Saúde cresceu a partir de 1983 com base nos princípios dos cuidados de saúde primários, através de uma rede centros de saúde, com médicos de família e enfermeiros que progressivamente abrangeu todo o país, constituindo-se ao longo dos últimos 40 anos como um dos principais legados do desenvolvimento da democracia portuguesa pós 25 de Abril e um instrumento fundamental para a redução das desigualdades entre os portugueses e a maior vitória da democracia portuguesa.

Destes progressos são bem conhecidos os exemplos dos resultados obtidos nos últimos 45 anos na redução da mortalidade infantil e no aumento da esperança de vida, que fizeram com que Portugal figurasse como um dos exemplos no Relatório Mundial de Saúde de 2008 “Cuidados de Saúde Primários – Agora Mais Que Nunca”.

A esperança de vida é agora de 13,1 anos mais elevada do que há 42 anos, a mortalidade infantil reduziu-se para metade a cada 8 anos até estabilizar na casa dos 3/1.000, e o desempenho de Portugal na redução da mortalidade nos vários grupos etários é dos mais consistentes e bem-sucedidos no mundo.

Resultados confirmados com a recente publicação do documento "Portugal: The Nation’s Health 1990–2016 - An overview of the Global Burden of Disease Study 2016 Results" que analisa o progresso que o país experienciou nos últimos 26 anos, em termos de saúde, bem-estar e desenvolvimento, e os novos desafios que enfrenta à medida que a sua população cresce e envelhece. O documento faculta informações sobre a mortalidade e morbilidade que impedem os portugueses de viverem vidas longas e saudáveis e clarifica os fatores de risco que contribuem para uma saúde mais débil, das quais salientamos.

    A confirmação de que Portugal passou da mais baixa esperança de vida à nascença em 1990 para os países de elevado-médio rendimento, para passado 26 anos ter uma expectativa de vida semelhante à média dos referidos países. Resultado que foi principalmente obtido pela redução da mortalidade prematura resultante das doenças cardiovasculares e dos acidentes de transporte.
    Apesar dos portugueses viverem mais, o número de anos vividos com saúde não aumentaram na mesma proporção.
    A mortalidade prematura em Portugal, medida pelas estimativas dos anos de vida perdidos (YLL, Years of Life Lost), entre 1990 e 2016 diminuiu 25,3%, em grande parte devido às reduções nas mortes por acidente vascular cerebral (AVC) e pela doença cardíaca isquémica, resultantes da melhoria significativa verificada no acesso e na qualidade dos serviços prestados pela rede de emergência pré-hospitalar que ocorreu nos últimos anos através das Vias Verdes do AVC e da doença coronária.
    A diminuição da mortalidade prematura (YLLs) decorrente dos acidentes de transporte e dos problemas neonatais foi também considerada um grande sucesso deste período. Os acidentes de transporte diminuíram 75,3%, as neonatais 90,3% e os defeitos congénitos 78,5%.
    A mortalidade prematura (YLLs) por cancro do pulmão aumentou nos últimos anos, verificando-se uma subida mais substancial entre as mulheres (68.1%) do que nos homens (34.4%), explicada pelo aumento consumo de tabaco entre as mulheres.
    As principais causas de anos vividos com incapacidade (YLDs) em Portugal são as doenças crónicas, principalmente, as perturbações músculo-esqueléticas, as perturbações mentais e as associadas ao consumo de substâncias, bem como as perturbações dos órgãos dos sentidos, as perturbações neurológicas e a diabetes.
    No caso dos anos de vida ajustados à incapacidade (DALYs) usados para descrever a carga da doença, levando em conta as mortes prematuras e a incapacidade, são de novo, o grande grupo das doenças crónicas a ultrapassar largamente a importância relativa dos outros grandes grupos de causas, nomeadamente, as lesões e as doenças transmissíveis, maternas, neonatais e nutricionais.
    No que respeita à carga global da doença, Portugal encontra-se significativamente melhor do que a média dos seus pares (países de elevado-médio rendimento) para a doença isquémica cardíaca, doença cerebrovascular, doenças dos órgãos dos sentidos, diabetes, cancro do pulmão, doença pulmonar obstrutiva crónica, infeções respiratórias inferiores, acidentes de transporte e quedas; encontra-se significativamente pior em relação às dores lombares (lombalgias) e do pescoço, às perturbações depressivas, à enxaqueca, às doenças da pele e ao cancro colo-retal.

Foi neste contexto que o sistema de saúde português se foi confrontando com novos e velhos desafios ao longo das últimas décadas, procurando por um lado adaptar o Serviço Nacional de Saúde ao envelhecimento da população, ao crescimento das doenças crónicas às desigualdades em saúde, às novas tecnologias, às exigências e às preferências dos consumidores por mais e melhor informação. Ao mesmo tempo que procurava melhorar a gestão dos serviços, modernizando-os, tornando-os mais acessíveis e efetivos, de que são exemplos a reforma dos cuidados de saúde primários e a criação da rede nacional de cuidados continuados integrados em 2005, tentando responder à sobreutilização dos serviços de urgência melhorando a integração e o contínuo de cuidados, tudo isto num ambiente de restrições financeiras, de dificuldades na modernização da gestão dos Hospitais e de dificuldades no recrutamento de profissionais de saúde.

45 Anos passados sobre o 25 de Abril e 40 anos sobre a criação do Serviço Nacional de Saúde é o momento de “reconduzir o SNS à sua matriz constitucional e humanista” como disse António Arnaut (aqui)(aqui).