Já alguma vez ouviu falar de Ramazzini e de
“picking”. Sabe o que é um “picker” (em português “operador de picking”).
Pense
num grande armazém do tamanho de 11 a 14 campos de futebol (7140 m2), daqueles
a quem pode encomendar produtos online,
imagine que está “armado” de uma pinça telescópica para agarrar objetos e de um
scanner portátil, o scanner dá-lhe a indicação exata do que
tem que pegar, do corredor e da prateleira onde está, coloca o objeto num
carrinho, a prateleira certa pode estar ao virar da esquina ou a 100 metros de
distância, você vai da linha A para pegar o item X e em seguida vai da linha P
para pegar o item C, é esperado que pegue 100 a 110 item por hora, dois por
minuto, ao longo de 9 a 10 horas de trabalho (pagas a 10/12 dólares/hora), ande
cerca de 19 km até encher um carro de 250 Kg e levá-lo até ao setor onde os
item são etiquetados e embalados, e continuar. Trabalha isoladamente e o seu
tempo de intervalo de trabalho mal dá para chegar à cantina onde ingere uma
refeição rápida. Os scanner´s portáteis para além do enviarem para o item
seguinte, também permitem que os seus gestores controlem com precisão o tempo
que leva a cumprir uma ordem, pode ser avisado se não mantiver o ritmo, este
atraso pode valer-lhe uma penalidade, que também lhe pode ser aplicada por se
ter enganado a pegar o item ou por se ter atrasado uns minutos na mudança de
uma linha, causando uma redução na sua remuneração ou até ao seu despedimento. (aqui) (aqui) (aqui)
O seu trabalho pouco difere do “vagabundo”, personagem dos Tempos Modernos de Chaplin, tentando sobreviver num mundo industrializado.
Ramazzini and worker´s health - Lancet |
E Ramazzini diz-lhe alguma coisa? Bernardino
Ramazzini nasceu em Carpi, uma pequena comuna perto de Modena no século XVII
(1633), licenciou-se em medicina viveu uma longa vida de 81 anos, começando a
ensinar Teoria da Medicina na Universidade de Modena aos 49 anos. Durante 20
dedicou o seu trabalho às doenças dos trabalhadores, investigou, visitou os
locais de trabalho, observou as atividades dos trabalhadores e discutiu com
eles as suas doenças e publicou a sua investigação na obra “ De Morbis
Artificum Diatriba” em 1700. (aqui)
Descreveu mais de 50 profissões, acrescentando à
abordagem recomendada por Hipócrates, (perguntar à cerca do tipo de dor ou de
doença, da causa ou da duração) a natureza da ocupação profissional. A sua
abordagem não se limitou a estabelecer uma relação entre as condições de
trabalho e os riscos e as doenças profissionais, uma vez que pugnou por
providenciar cuidados e estabelecer medidas preventivas, a sua análise
inovadora estabelecendo as relações entre as atividades laborais e as doenças
profissionais, aproxima-o da saúde ocupacional moderna que também se concentra
na prevenção de riscos e na proteção pessoal, aborda as questões ambientais e
sociais, e promove a saúde e segurança como um componente integral da saúde
pública.
Ramazzini chamou a atenção para os perigos físicos e
químicos, que hoje ainda prevalecem em muitas partes do mundo, na agricultura,
nas minas, nas fábricas e na construção, mas não podia prever que na era
pós-industrial, as situações mais preocupantes sejam as desigualdades no poder
no local de trabalho e as condições psicossociais de um trabalho como “operador
de picking”.
Às pesadas exigências físicas do trabalho de
“operador de picking”, somam-se a falta de controlo sobre o seu próprio
trabalho, um esforço elevado para uma fraca remuneração, o isolamento social no
trabalho, a precaridade, o trabalho por turnos e a injustiça organizacional,
criando condições para piorar a saúde. O trabalho ajuda a definir o nosso
estatuto social e a nossa identidade, o que pensamos que somos e o que a
sociedade acha que somos, o trabalho é um lugar de desenvolvimento de relações
sociais, pode proporcionar oportunidades de autorrealização e de crescimento
pessoal. (aqui)
O trabalho como agora o descrevemos é gerador de de
doença e desigualdades, mas não acontece por acaso. Foi planeado e requere
certas condições sociais, baixa sindicalização, falta de alternativas de
emprego, um foco contínuo na margem de lucro, e a tolerância ou mesmo a
promoção por parte da sociedade por este tipo de emprego. (aqui)
Se o trabalho e o emprego podem ser causas de
problemas de saúde, temos de olhar para a causa das causas.
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